José Ortega y Gasset - Sobre a Linguagem

dezembro 22, 2018 , 0 Comments


"Não posso esperar melhor sorte quando estou persuadido de que falar é uma operação muito mais ilusória do que se supõe, certamente, como quase tudo que o homem faz. Definimos a linguagem como o meio de que nos servimos para manifestar nossos pensamentos. Mas uma definição, se é verídica, é irônica, encerra tácitas reservas, e quando não a interpretamos assim, produz funestos resultados. Assim esta. O de menos é que a linguagem sirva também para ocultar nossos pensamentos, para mentir. A mentira seria impossível se o falar primário e normal não fosse sincero. A moeda falsa circula apoiada na verdadeira. No final das contas, o engano vem a ser um humilde parasita da ingenuidade. 


Não; o mais perigoso daquela definição é o acréscimo otimista com que costumamos escutá-la. Porque ela mesma não nos assegura que mediante a linguagem possamos manifestar, com suficiente justeza, todos os nossos pensamentos. Não se arrisca a tanto, mas tampouco nos faz ver francamente a verdade estrita: que sendo ao homem impossível entender-se com seus semelhantes, estando condenado à radical solidão, esgota-se em esforços para chegar ao próximo. Desses esforços é a linguagem que consegue às vezes declarar com maior aproximação algumas das coisas que acontecem dentro de nós. Apenas. Mas, habitualmente, não usamos estas reservas. Ao contrário, quando o homem se põe a falar, isto faz porque crê que vai poder dizer tudo que pensa. Pois bem, isso é o ilusório. A linguagem não dá para tanto. Diz, mais ou menos, uma parte do que pensamos e põe uma barreira infranqueável à transfusão do resto. Serve bastantemente para enunciados e provas matemáticas; já ao falar de física começa a ser equívoco e insuficiente. Porém quanto mais a conversação se ocupa de temas mais importantes que esses, mais humanos, mais "reais", tanto mais aumenta sua imprecisão, sua inépcia e seu confusionismo. Dóceis ao prejuízo inveterado de que falando nos entendemos, dizemos e ouvimos com tão boa fé que acabamos muitas vezes por não nos entendermos, muito mais do que se, mudos, procurássemos adivinhar-nos. 

Esquece-se demasiadamente que todo autêntico dizer não só diz algo, como diz alguém a alguém. Em todo dizer há um emissor e um receptor, os quais não são indiferentes ao significado das palavras. Este varia quando aquelas variam. Duo si idem dicunt non est idem. Todo vocábulo é ocasional. A linguagem é por essência diálogo, e todas as outras formas do falar destituem sua eficácia. Por isso eu creio que um livro só é bom na medida em que nos traz um diálogo latente, em que sentimos que o autor sabe imaginar concretamente seu leitor e este percebe como se dentre as linhas saísse u'a mão ectoplástica que tateia sua pessoa, que quer acariciá-la - ou bem, mui cortesmente, dar-lhe um murro. 

Abusou-se da palavra e por isso ela caiu em desgraça. Como em tantas outras coisas, o abuso aqui consistiu no uso sem preocupação, sem consciência da limitação do instrumento. Há quase dois séculos que se acredita que falar era falar urbi et orbi, isto é, a todos e a ninguém. Eu detesto essa maneira de falar e sofro quando não sei concretamente a quem falo. 

Contam, sem insistir demasiado sobre a realidade do fato, que quando se celebrou o jubileu de Victor Hugo foi organizada uma grande festa no palácio do Elíseo, da qual participaram, levando suas homenagens, representações de todas as nações. O grande poeta achava-se na grande sala de recepção, em solene atitude de estátua, com o cotovelo apoiado no rebordo de uma chaminé. Os representantes das nações adiantavam-se ao público e apresentavam sua homenagem ao vate da França. Um porteiro, com voz estentórica, anunciava-os: 

"Monsieur le Représentant de l'Anglaterre!" E Victor Hugo, com voz de dramático trêmulo, virando os olhos, dizia: "L'Anglaterre! Ah, Shakespeare!" O porteiro continuou: "Monsieur le Représentant de l'Espagne"! E Victor Hugo: "L'Espagne! Ah, Cervantes!" O porteiro: "Monsieur le Représentant de L'Allemagne!" E Victor Hugo: "L'Allemagne! Ah, Goethe!"

Mas então chegou a vez de um senhor baixo, atarracado, balofo e de andar desgracioso. O porteiro exclamou: "Monsieur le Représentant de la Mésopotamie!" 

Victor Hugo, que até então permanecera impertérrito e seguro de si mesmo, pareceu vacilar. Suas pupilas, ansiosas, fizeram um grande giro circular como procurando em todo o cosmos algo que não encontrava. Mas logo se viu que o achara e que recobrara o domínio da situação. Efetivamente, com o mesmo tom patético, com a mesma convicção, respondeu à homenagem do rotundo senhor dizendo: "La Mésopotamie! Ah, L'Humanité!"

Contei isso a fim de declarar, sem a solenidade de Victor Hugo, que não escrevi nem falei à Mesopotâmia, e nunca me dirigi à Humanidade. Esse costume de falar para a Humanidade, que é a forma mais sublime, e, portanto, a mais desprezível da demagogia, foi adotada até 1750 por intelectuais desajustados, ignorantes de seus próprios limites e que sendo, por seu ofício, os homens do dizer, do logos, usaram dele sem respeito e precauções, sem perceberem que a palavra é um sacramento de mui delicada administração."

Autor: José Ortega y Gasset - Rebelião das Massas

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