O Homem e a Morte: O Final de Tudo - Parte 22


Fazem 3 anos que meu pai morreu, então eu tive que exumar o corpo e colocar os ossos em um ossuário, que é preciso comprar (e pagar sua manutenção anualmente). Descobri que quem não pegar os restos mortais depois desse tempo, os funcionários do cemitério queimam todos eles juntos em uma grande cremação e sabe-se lá o que fazem com as cinzas.

Demorou horas pra papelada ficar pronta, mas enfim os funcionários foram conosco até o corpo. Eles abriram a caixa, onde o caixão foi colocado, e puxou para fora um caixão maior e diferente. O funcionário explicou que não poderíamos assistir, perguntei se era por causa da covid, mas ele disse que não, que era porque aquele caixão era um caixão "ecológico", que se fosse um caixão normal, os que ficam enterrados, poderíamos assistir normalmente. Ele alertou também que aquilo era pesado demais para os familiares. Todos os funcionários estavam cobertos com uma roupa especial branca com capuz, luvas, e mascaras, e o mesmo funcionário disse que isso era preciso para fazer a exumação desses caixões "ecológicos". Ele disse, entretanto, que podíamos pedir autorização ao chefe dele para assistirmos a exumação e assim fomos, e ele nos autorizou a olhar rapidamente quando abrissem e depois deveríamos sair.

Alguns minutos depois um homem todo encapuzado com aquela roupa branca abriu um portão e nos chamou para entrarmos. Apenas eu e mais uma pessoa mais velha fomos, os outros não queriam ver. Ao passar pelo portão me deparei com uma sala grande com vários itens espalhados, mas viramos a esquerda e descemos uma escada minúscula e viramos a esquerda novamente e, assim que a escada acaba, no lado direito tem uma porta pequena que da para uma sala afundada. Entramos nessa sala, nos abaixando um pouco, pois ela estava num nível mais fundo que o corredor estreito onde a escada nos deixou.

Era uma sala grande, fria, vazia, e ao longe havia um funcionário todo encapuzado com aquela roupa branca, de luva, e mascara, nos olhando fraternamente, respeitando o momento, e bem a nossa frente estava uma mesa de aço, de pouco mais de um metro de altura e uns 2 metros de comprimento, e um esqueleto encima dela. Ele estava todo coberto por terra, estava todo sujo, e eu não consegui ver muita coisa, mas o crânio eu vi perfeitamente. O crânio estava intacto, sem uma rachadura, sem muita sujeira, e era muito bonito. Ele estava virado para o lado direito, em nossa direção, quase nos olhando. A coisa que mais chamou minha atenção foi o cheiro horrível; não era um cheiro de carniça igual aos defuntos em decomposição, era um cheio de terra podre com coisas a mais que eu não sei descrever, mas era um cheiro bem forte. No mesmo instante que viu o esqueleto a mulher idosa comigo desabou em pratos e questionava alto o que era a vida, qual era nosso propósito, porque tudo tinha que acabar assim, enquanto eu olhava atentamente ao esqueleto. Ao longe o funcionário na sala continuava a nos olhar fraternamente e com pena. Envolvi a senhora e a confortava, enquanto ela chorava. Ela me abraçou em prantos, enquanto olhávamos para o que antes era nosso ente querido. Depois nós saímos.

Foi tão estranho ver aquilo. Vemos uma pessoa viva, feliz, sorrindo, brincando, e agora ela era aquilo ali... um monte de ossos sujos que em nada remetia ao que ela tinha sido. Quem olharia para aqueles ossos e veria uma pessoa? Quem veria a pessoa que conhecíamos? De fato, aquele monte de ossos já havia sido alguém, já havia sido uma pessoa, já havia vivido.

Como uma pessoa pode virar aquela coisa... Um estado horrível, irreconhecível, fedido, completamente vulnerável, frágil e exposto nas mãos de pessoas que não conhecemos e não tem respeito, não o veem como algo que já foi um ser vivo, mas apenas um objeto de trabalho.

Antes alguns velhos reclamavam do uso do símbolo de caveira como se fosse algo pesado, mas eu achava uma besteira, entretanto, depois dessa experiência, eu entendo eles agora. Somente depois dessa experiência que o símbolo de uma caveira passou a ter um significado para mim, passou a ter um peso para mim. Agora eu consigo enxergar que um esqueleto havia sido alguém, havia sido uma pessoa, que havia sido um ente querido de alguém que agora estava apodrecendo irreconhecível, e nem mais parecia que havia sido uma pessoa. Agora eu entendo o uso do símbolo de esqueleto no Momento Mori, por exemplo, pois vi que um cadáver não representa totalmente a morte; você ainda consegue ver uma pessoa em um cadáver, consegue ver que havia uma vida ali, talvez até veja um cadáver e imagine que a pessoa só está dormindo, mas com um esqueleto não. Um esqueleto é o estágio final, nos mostra que não somos realmente nada, que vamos apodrecer e apodrecer até sermos terra. Um esqueleto não nos faz lembrar que houve vida ali, pelo contrário. Por isso, agora acho que ele realmente o símbolo perfeito para representar a morte.

Alguém pode ver vários esqueletos em vida, mas só sentirá o peso dele, só o entenderá, quando for de alguém que conheceu, de alguém próximo a ele. Isso se aplica a morte também. E também não acho que ver um esqueleto na internet seja o mesmo que pessoalmente, depois que voltei pra casa procurei imagens de esqueletos e não senti a mesma coisa que pessoalmente, nem parecia iguais. Eu estudei profundamente a morte, mas é preciso vivência-la para sentir seu peso verdadeiro, não tem jeito...

Minutos depois os funcionários saíram e disseram que já estava tudo pronto para irmos ao ossuário. Um deles carregava um saco verde grande e resistente com os ossos do meu pai dentro. Era tão pesado que ele precisava segurar nos ombros. Perguntei a um deles sobre a terra que eu vi, pois os outros que estavam comigo a quem contei disseram que não era terra o que eu vi, já que ele não foi enterrado, e ele confirmou que de fato era terra, que apodrecemos e resta terra. Então, finalmente eu consegui perceber, lembrar, que de fato, nossa pele, músculos, órgãos, tudo apodrece e deve virar terra mesmo. Como ele havia sido posto num saco, por causa da covid, a umidade fez a terra virar a lama que estava cobrindo boa parte do esqueleto do meu pai.

Talvez ter visto apenas um esqueleto não seria tão pesado, mas toda a ambientação, o clima, tudo isso que tornou a cena pesada. Aquela sala pequena, escondida, fria, suja, com funcionários completamente cobertos, encapuzados, sujos e fedidos, aquela ansiedade até a chegada e o silêncio ensurdecedor de todos.

Os outros não queria ver, nem saber o que eu vi lá dentro, então apenas contei para eles daquele cheiro forte que eu não esqueceria. Mas, enquanto o funcionário levava o saco com o ossos para o ossuário, passamos por um lugar apertado e um cheiro forte não pôde deixar de ser sentido por todos. Um entendeu o que era, outra achou que era cheiro de fezes dos gatos que ficavam no cemitério, mas quando eu lhe contei a origem do cheiro ela se impactou. Eu nem precisei descrever o cheiro que me marcou para eles, pois todos acabaram por senti-lo. O ossuário ficava num lugar mais fechado ainda, bem estreito, e todos tiveram que tapar os narizes, pois o cheiro estava insuportável.

Vendo o funcionário tentar enfiar o saco com os ossos naquele quadrado minúsculo e apertado, pois já tinham outros restos mortais em sacos também, e tudo o que presenciei, me fez mudar um pouco meu pensamento sobre cremação, o qual eu era contra e achava ser uma profanação, pois além de evitar ficarmos, e sermos vistos naquele estado, no fim, mesmo que sua família pague um ossuário, chegará uma época que não pagarão mais e o cemitério mandará tirar seus restos mortais e cremar, então no fim acabaríamos no fogo de qualquer jeito, a não ser que sejamos alguém extremamente famoso cujo túmulo será um memorial até o fim dos tempos, ou rico a ponto de pagar um jazigo perpetuo (o que boa parte dos cemitério já não vendem mais, pois não tem mais espaços). No fim, o funcionário ainda me disse que está era a 5° exumação que ele tinha feito naquele dia!

Na volta para casa eu via todas as pessoas pelo caminho como esqueletos. Eu não conseguia deixar de vê-las assim, já que era o fim de todas. Era assim que todos nós iremos terminar. Tudo, então, parecia tão fútil e irrelevante. Eu olhava homens fortes, mulheres bonitas, via pessoas cheirosas, e só conseguia pensar no fim delas, todas como esqueletos podres e irreconhecíveis, então do que adiantaria tudo aquilo?

Essa experiência me fez entender aquelas imagens de esqueletos e a legenda que diz que o fim de todos é aquele, que não devemos ser arrogantes ou vaidosos. Eu cansei de ver essas imagens, mas ela não tinha peso nenhum para mim, só a boa lição de que um dia todos morremos. Entretanto, agora sim ela tem um peso e penso que os autores da postagem devem tê-las feitos com esse peso em mente também, provavelmente.

Enquanto ia para a academia hoje eu aproveitei cada segundo de tudo que experenciava. Eu sentia o sol na minha cara, o vento gostoso, o ar que respirava. Tentei aproveitar tudo ao máximo enquanto ainda estou vivo, dar valor a cada coisa, pois morto não poderemos mais vivenciar isto, não poderemos mais sentir o sol, não poderemos mais sentir a brisa sobre a nossa pele, não poderemos mais respirar. Vi também que devemos aproveitar o que podemos, então antes eu achava idiota gastar dinheiro em uma skin de jogo, ou em roupas, ou em qualquer besteira, mas agora penso que devemos fazer isso sim e aproveitar enquanto podemos já que tudo é fútil, assim se te traz felicidade e não faz mal, faça. De maneira moderada é claro, não é para agir como se o mundo fosse acabar amanhã — apesar de ser possível.

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