O Que a Filosofia Samurai Tem a Nos Ensinar Sobre Masculinidade?


Existe uma constante dualidade dentro de nós, ela reside na relação entre a forma e a essência, na sociedade atual esse conflito foi ocultado ao supervalorizarmos as aparências em detrimento do que consta em nosso interior. Essa hierarquia desequilibrada é uma noção intrínseca da sociedade pós-moderna, para retornarmos a uma harmonia entre estes conceitos precisamos primeiro resgatar elementos importantes da visão de mundo das sociedades tradicionais.

No mundo das tradições antigas, o ethos (percepção de mundo, arquétipo) acolhia a ideia de que o terreno reflete o celestial, que o divino e o humano estão espelhados e são indissociáveis — lembremos que nestas sociedades o rei também é um sacerdote que liga a Terra ao Mundo Superior, justificando assim sua autoridade. Essa relação balanceada também é compreendida na relação entre intelecto e corpo; dentro desta visão, a antropóloga americana Ruth Benedict (no contexto da 2ª Grande Guerra), para entender a essência da sociedade japonesa, escreveu um estudo chamado de “O Crisântemo e a Espada”, mas o que deveria ser um apenas uma ferramenta do governo dos EUA para estudar uma nação inimiga retratou com grande precisão o espírito da sociedade nipônica.

O crisântemo (flor dourada, na Ásia, associada ao sol) simboliza as artes e a sofisticação e a espada simboliza a força ou poder de fogo, e é uma analogia para entender a filosofia por trás do comportamento do povo japonês, que é tanto capaz de extrema civilidade como também do comportamento obstinado em combate. Este estudo foi acolhido pelo autor Yukio Mishima (1925–1970) para endossar a sua filosofia de vida, Mishima foi um romancista e dramaturgo japonês tradicionalista do pós guerra que, descontente com a ocidentalização do país após a perda do conflito, organizou movimentos sociais e agitações no sentido de divulgar suas ideias e princípios, e é através dos olhos de Mishima que depreenderemos uma perspectiva oriental sobre masculinidade e qual, dentro desta visão, deve ser o destino do homem.


Como dito, as sociedades tradicionais não distinguem forma de essência, isso porque a harmonia é importante para que você viva uma vida plena, coerente. Yukio entendia esse conceito, tanto que o aplicou para sua vida, conhecido como o “Leonardo Da Vinci do Japão”, o autor além de intelectual e escritor (acumulando 4 indicações ao nobel literário) era fisiculturista (indo de um franzino adolescente para um atleta na vida adulta); para ele a mente (crisântemo) deve estar em balanço com o corpo (espada) e para tanto exige trabalho e esforço contínuo, bem como valores rígidos e códigos de conduta sólidos. Vale ressaltar que o ethos tradicional é hierárquico e aristocrático (diferente da visão democrática atual) e nela o lucro e o dinheiro estão subordinados aos valores e as necessidades da nação, tanto que, na comunidade japonesa antiga, o ofício de comerciante não era bem visto e olhado com desconfiança, possuindo menos valor social diante de outras profissões como a cavalaria e a agricultura, a plutocracia (regime onde reina o poder do lucro) era uma impossibilidade no Japão antigo.

Mencionei o caráter aristocrático pois é importante entendermos que a noção de igualdade para Mishima não existia, você só alcança a excelência através do trabalho árduo e isso só é possível se forjado no ambiente do desafio e da autoimposição de princípios. Como analogia, a masculinidade seria uma katana (espada japonesa), diferente das outras, ela é forjada dezenas de vezes até alcançar a perfeição do corte, e seu preparo se prolonga por anos, e assim deve ser a masculinidade. Neste princípio seria, então, desprezível um homem em que o corpo não refletisse o aprimoramento de seu intelecto, não basta ser forte, deve parecer forte, sua casca deve ser tão poderosa quanto a sua mente (e vice-versa), essa visão do que é ser homem foi levada ao extremo por Yukio que após um momento de epifania internalizou que, em suas palavras,

"(…) o destino do guerreiro é morrer pela espada."

E no auge de sua forma física e clareza mental, aos 45 anos, cometeu seppuku (ritual suicida japonês) na intenção de torna-se um símbolo para sua ideias contra a ocidentalização do Japão. Mishima viveu e morreu como um guerreiro samurai, em seu enterro admiradores, incluindo membros do Tatenokai — ou Sociedade do Escudo, grupo que fundou em vida, um movimento de jovens nacionalistas seguidores do código Bushido, amantes de fisiculturismo e artes marciais e crentes da figura divina do imperador— lotaram as ruas numa manifestação popular jamais presenciada em nome de uma figura pública até então.

Crítico da feminização da sociedade, e enxergando no pacifismo de um oriente ocidentalizado o tédio que enferruja o melhor que o homem pode oferecer ao mundo, Yukio terminou sua vida vivendo pelo que acreditava. Aliás, viver e morrer pela espada pode possuir muitos significados e muitos deles só podem ser compreendidos quando nos desprendemos da visão ocidental de mundo — que enxerga a morte de maneira temível ou vê o ato de tirar a própria vida como algo abominável — , através da mitologia de Mishima, para o homem moderno, esvaziado de sentido e espiritualidade, longe de qualquer incentivo em buscar a morte, é o exemplo de que se deve viver por um propósito. Como uma katana é forjada 100 vezes ao longo de anos para o corte preciso, o homem deve aprimorar-se para ser o melhor naquilo que se propõe e fazê-lo com perfeição, encontrar o seu objetivo, a sua habilidade ou profissão, e expressar-se de maneira exímia através dela, e principalmente abraçar o equilíbrio entre forma e essência, corpo e intelecto, entre o crisântemo e a espada.

Texto de: Ricardo C. Thomé
Fonte: https://medium.com/oconselho/o-masculino-o-cris%C3%A2ntemo-e-a-espada-e86a81693701

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