Seneca - Doença e Sofrimento (Epístola 78)

novembro 29, 2020 , , 0 Comments


1 Dizes que sofres com expectorações intensas e febres fracas que acompanham as tosses prolongadas tornadas crônicas, o que para mim é mais molesto porque já experimentei esse tipo de enfermidade , que aos primeiros sintomas desdenhei (até então, minha adolescência era capaz de suportar adversidades e de enfrentar doenças obstinadamente), em seguida, capitulei e fui levado a tal extremo que eu mesmo desintegrava, reduzido à extrema magreza.

2 Tantas vezes tive o impulso de interromper minha vida: a idade avançada do meu afabilíssimo pai me reteve. Pensei, de fato, não em quanta força eu teria para morrer, mas em quanta força ele não teria para suportar minha ausência. Desse modo, determinei-me a viver. De fato, às vezes, viver também é para os fortes.

3 Vou falar o que, então, me serviu de consolo, mas antes devo dizer que essas mesmas coisas, com as quais me acalmava, tiveram a eficácia de um medicamento. Consolações morais funcionam como um remédio, e é útil também ao corpo o que quer que tenha fortalecido o espírito. Nossos estudos foram, para mim, uma salvação. Atribuo à filosofia ter me erguido, ter me recuperado. É a ela que devo a vida e nada menos do que isso devo a ela.

4 Ora, contribuíram muito para a minha boa disposição também os amigos, que me aliviavam com suas exortações, suas noites de vigília, suas conversas. Nada igual ao afeto dos amigos, Lucílio, tu que és o melhor dos homens, para restaurar e ajudar um doente, nada igual para extirpar a expectativa e o medo da morte: eu não julgava que fosse morrer visto que os deixaria vivos. O que estou dizendo é que eu supunha que ainda viveria, não com eles, mas por meio deles: não tinha a impressão que fosse exalar meu último suspiro, mas que a eles o entregaria. Essas coisas me deram vontade de ajudar a mim mesmo e de suportar cada tormento. De resto, é muito lamentável, depois que se abriu mão do ânimo de morrer, não ter ânimo de viver.

5 Logo, recorre também tu a estes remédios. O médico te orientará o quanto deves caminhar, o quanto deves te exercitar; que não cedas à inércia, à qual se rende a indisposição; que leias mais alto e exercites a respiração, cujas vias aéreas e pulmões se esforçam; que velejes e ponhas em movimento teus órgãos com o doce balanço; quais alimentos consumir e, quanto ao vinho, quando deves recorrer a ele para ter forças, quando deves te abster dele para que não provoque e agrave a tosse. Já eu, o que te receito é um remédio não apenas para esta doença, mas para uma vida inteira: desdenha a morte. Nada é triste quando escapamos ao medo dela.

6 Estas três coisas pesam em toda doença: o medo da morte, a dor do corpo, a interrupção dos prazeres. Já se falou o bastante da morte. Só quero dizer uma coisa: este medo não é característico da doença, mas da nossa natureza. Muitos tiveram a morte adiada por uma doença e ela os salvou porque parecia que iam perecer. Morrerás não porque adoeces, mas porque vives. Essa condição te acompanha mesmo curado. Uma vez que te recuperaste, escapaste não à morte, mas a uma enfermidade.

7 Voltemo-nos agora para aquilo que é o incômodo propriamente: a doença traz grandes torturas, mas se tornam toleráveis pelos intervalos entre elas, pois uma dor extremamente intensa tem seu fim. Ninguém pode ter muita dor por muito tempo. A natureza, que muito nos ama, assim nos programou de modo a que a dor nos fosse ou tolerável ou breve.

8 As dores mais fortes instalam-se nas partes mais delgadas do corpo: nervos e articulações e o que for afilado padece atrozmente quando um membro é tomado por males. Mas essas partes logo se entorpecem e perdem a sensibilidade à dor devido à própria dor, seja porque a respiração, com seu fluxo natural bloqueado e prejudicado, perdeu a força que nos anima e alerta, seja porque humores infectados, quando já não têm para onde fluir, sufocam-se e tiram a sensibilidade nos membros em que se infiltraram em excesso.

9 Assim, a gota e a artrite e toda dor nas vértebras e nos nervos faz uma pausa quando embota os membros que retorcia: a manifestação inicial de todas elas faz sofrer, o impacto se extingue com o tempo e o fim da dor é ficar dormente. Justamente porque surge em partes pequenas do corpo, a dor nos dentes, olhos e ouvidos é agudíssima, não menos – por Hércules! – que a da própria cabeça, mas se esta for mais violenta, converte-se em delírio e torpor.

10 Desse modo, é este o consolo para uma dor agressiva: é inevitável que a deixes de sentir se a tiveres sentido excessivamente. Ora, no sofrimento do corpo, o que faz mal aos despreparados é que não se acostumaram a contentar-se com o espírito, ocuparam-se muito do corpo. Por isso, o homem grandioso e prudente separa o espírito do corpo e se envolve muito com sua parte melhor e divina, apenas o necessário com esta queixosa e frágil.

11 Alguém diz: “Mas é penoso ficar sem os prazeres costumeiros, abster-se de comida, passar sede, passar fome”. No início da abstinência, estas coisas pesam, em seguida, o desejo diminui porque os mesmos que nos fazem desejar estão fatigados e deficientes: o estômago fica, então, lento; os que tinham avidez por comida têm, então, repulsa por ela. Os próprios desejos morrem. Ora, não há amargura em não ter o que se deixou de desejar.

12 Soma a isso que não há dor que não faça uma pausa ou, pelo menos, diminua. Soma a isso que é possível precaver-se e resistir a uma dor iminente com remédios. De fato, não há uma que não antecipe seus sinais, principalmente a que ocorre com frequência. Pode-se tolerar uma doença se a sua pior ameaça for tratada com desdém.

13 Não tornes tu mesmo o que já é ruim pior, e não te sobrecarregues com queixumes: é leve a dor que não se deixa impressionar. Pelo contrário, se começas a exortar a ti mesmo e a dizer “isso não é nada ou, pelo menos, é pouco, resistamos, já vai passar”, a dor será leve enquanto pensares assim. Tudo depende da impressão que temos. Não é só a ambição, a luxúria e a avareza que se baseiam nela: adoecemos de acordo com nossa impressão.

14 Qualquer um é tão infeliz quanto crê sê-lo. Julgo que devam ser abandonadas as lamúrias de antigas dores e palavras assim: “Ninguém jamais sofreu tanto. As torturas, os males que suportei! Ninguém supôs que eu me reergueria. Quantas vezes meus familiares choraram por mim, quantas vezes os médicos me deram por perdido. Nem os colocados sobre a mesa de tortura são assim destroçados”. Mas se essas coisas são mesmo verdadeiras, ficaram para trás. Ajuda em que relembrar dores antigas, ser infeliz porque já o foste? Por que todos exageram o próprio sofrimento e mentem a si mesmos? Ademais, é reconfortante ter suportado o que foi amargo suportar: é natural alegrar-se com o fim do mal que te abatia. Logo, há que eliminar os dois, tanto o medo do futuro como a memória de um incômodo anterior: a última já não me diz respeito; a primeira, ainda não.

15 Quem se encontra numa dificuldade dessas deve dizer: Talvez seja agradável recordar um dia mesmo coisas assim. Que ele lute contra com todo ânimo: será vencido se ceder; vencerá se intentar contra a própria dor. Ora, a maioria o que faz é atrair para si a ruína à qual é preciso se opor. Isso que te oprime, que te ameaça, que te pressiona, se passares a esquivar-te dele, isso vai te perseguir e acossar mais. Se te firmares contra e quiseres resistir, será repelido.

16 Quantos golpes os campeões recebem no rosto! Quantos em todo o corpo! No entanto, suportam cada tormento por aspirarem à glória, e não é apenas porque lutam que padecem essas coisas, mas para que lutem: o próprio treinamento é um tormento. Que também nós conquistemos todas as provas, cujo prêmio não é nem uma coroa, nem uma palma, nem mesmo uma trombeta impondo silêncio para a proclamação de nosso nome, mas virtude e ânimo forte e a paz que nos aguarda se uma vez, num combate qualquer, a fortuna foi derrotada.

17 “Sinto uma dor intensa.” E então? A sensação será diferente se a suportares como uma mulherzinha? Do mesmo modo que o inimigo é mais nocivo aos que fogem, assim todo incômodo fortuito persegue mais quem vai lhe dando as costas. “Mas pesa.” Então? É para isso que somos fortes, para carregarmos o que é leve? De duas uma, queres uma doença prolongada ou uma violenta e breve? Se for prolongada, ela tem uma pausa, dá chance de recuperação, nos concede muito tempo; é inevitável que tenha um pico e desapareça. Uma doença breve e agressiva fará uma de duas coisas: ou ela se acaba ou acaba contigo. Ora, que diferença faz que ela não exista ou que eu não exista? De um jeito ou de outro, há um fim para a dor.

18 Será útil também que desvies para outros pensamentos o teu espírito e o afastes da dor. Pensa no que com honradez e bravura fizeste, trata contigo mesmo sobre as partes boas, resgata a memória das coisas que mais te surpreenderam, então, deve te ocorrer quem é o mais forte e vitorioso sobre a dor: aquele homem que perseverou na leitura de um livro enquanto lhe secavam as varizes, aquele que não deixou de rir quando torturadores, irritados com isso mesmo, experimentavam nele todos os instrumentos da sua crueldade. Não será vencida pela razão a dor que foi vencida pelo riso?

19 Ora, podes citar o que quiseres: expectorações e a virulência de uma tosse constante que faz escarrar sangue e a febre queimando o próprio peito e a sede e os membros retorcidos pelas articulações deformadas. E mais: o fogo e a mesa de torturas e a lâmina em brasa e algo que, forçado sobre os mesmos ferimentos inchados, os reabriria e pressionaria mais fundo. Contudo, em meio a isso tudo, houve quem não gemeu. É pouco: não implorou. É pouco: não respondeu. É pouco: riu, e foi de coração. Depois disso, não queres ridicularizar a dor?

20 Alguém diz: “Mas a doença não me permite fazer nada. Ela me afastou de todas as obrigações”. A enfermidade se apodera do teu corpo, não do teu espírito. Desse modo, torna mais lentos os pés do corredor, paralisa as mãos do sapateiro ou do artesão. Se estás acostumado a usar teu espírito, vais convencer e ensinar, vais ouvir e aprender, vais perguntar e recordar. E depois? Crês não fazer nada se fores um enfermo dócil? Mostrarás que a doença pode ser superada ou, pelo menos, tolerada.

21 Creia em mim, há ocasião de ser corajoso mesmo de cama. Não apenas as armas e as frentes de batalha dão provas de um espírito enérgico e intrépido diante do terror, também sob as cobertas se revela um homem valente. Tens o que fazer: travar uma boa luta contra a doença. Se nada te força, se nada te compele, dás um belo exemplo. Teríamos tanto motivo de orgulho se fôssemos observados quando enfermos! Observa a ti mesmo, louva a ti mesmo.

22 Além disso, há dois tipos de prazeres. A doença inibe os do corpo, contudo, não os tolhe. Na verdade, se observares bem, os incita. Agrada mais beber quando se está sedento, é mais saborosa a comida para o faminto: tudo que escapa à abstinência é consumido mais avidamente. Na realidade, os prazeres do espírito, que são mais elevados e mais seguros, nenhum médico nega ao doente. Quem os persegue e os compreende bem desdenha todas as seduções dos sentidos.

23 “Que doente infeliz!” Por quê? Por que não dilui neve no vinho? Por que não volta a refrescar com gelo moído sua bebida, que preparou numa taça exagerada? Por que não são abertas ostras do lago Lucrino à sua própria mesa? Por que não há, circulando na sua sala de jantar, o tumulto dos cozinheiros transportando fogareiros com iguarias? De fato, é isso que nossa luxuosidade agora inventou: para que nenhuma comida esfrie e nada chegue menos que fervendo ao palato já calejado, a cozinha se transfere para a sala de jantar.

24 “Que doente infeliz!” Comerá quanto puder digerir. Não ficará à vista um javali, carne banida da mesa como inferior, nem na sua travessa serão empilhados peitos de aves (de fato, vê-las inteiras dá enjoo). Que mal te fez? Jantarás como um doente, ou melhor, uma vez, como uma pessoa saudável.

25 Mas suportaremos facilmente todas estas coisas: a sopa, a água quente e tudo o mais que parece intolerável aos esnobes e amolecidos pelo luxo e que têm mais doente o espírito que o corpo. Deixemos apenas de ter horror à morte. Ora, deixaremos desde que conheçamos os limites do que é o bem e do que é o mal. Assim, afinal, nem a vida trará tédio, nem a morte, temor.

26 Por certo, o enfado consigo mesmo não pode se apoderar de uma vida que presencia tantas coisas variadas, grandiosas, divinas: é o ócio improdutivo que costuma conduzir a vida ao ódio de si. Para quem perscruta a natureza, a verdade nunca resultará um fastio, o falso é que causará enfado.

27 Depois, se a morte o está chamando, ainda que seja prematura, ainda que corte ao meio a existência, seu fruto é percebido como se fosse muito longa. Boa parte da natureza já não é um mistério para ele, que sabe que a honradez não aumenta com o tempo. É inevitável que toda vida pareça breve a esses que a medem pelos prazeres vãos e, por isso, sem fim.

28 Busca conforto nestes pensamentos e, entretanto, arranja tempo para nossas cartas. Em algum momento, haverá ocasião de nos encontrarmos e convivermos de novo: não importa quão breve, será longa sabendo aproveitá-la bem. Pois, como diz Posidônio: “Um só dia dos homens instruídos se estende mais que a longuíssima existência dos despreparados”.

29 Entretanto, retém isto, fixa isto: não ceder às adversidades, não crer em facilidades, ficar de olho em cada liberalidade da fortuna como se tudo o que ela pode fazer estivesse para acontecer. Tudo o que se espera há tempos pesa menos quando chega."


Fonte: Seneca, Edificar-se Para a Morte, Edipro, Epistola 78, Pág 108-117

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