Seneca - Com quem você está diariamente?

dezembro 24, 2020 , , 0 Comments


"Esses que correm de um compromisso para outro, que inquietam tanto a si como os demais, depois de enlouquecer totalmente, depois de diariamente perambular pelas soleiras de todos, sem preterir nenhuma porta aberta, depois de fazer circular sua saudação interesseira por residências em locais os mais diversos, quão pouca gente eles poderão ver de uma cidade tão imensa e enredada em variados desejos?

Quantos haverá cujo sono ou desregramento ou grosseria irá barrá-los! Quantos haverá que, depois de longa e torturante espera, passarão por eles simulando pressa! Quantos evitarão aparecer no átrio repleto de clientes e escaparão por passagens secretas de sua casa, como se fosse menos grosseiro driblar do que não receber! Quantos, sonolentos e pesados pela farra da véspera, num bocejo de extrema arrogância, mal relaxando os lábios repetirão o nome, que lhes fora mil vezes sussurrado, daqueles coitados que interromperam o próprio sono para esperar o do outro!

Podemos dizer que se aplicam a obrigações verdadeiras aqueles que em sua intimidade vão querer estar diariamente com Zenão, com Pitágoras, com Demócrito e com os outros mestres de sabedoria, com Aristóteles e Teofrasto. Nenhum desses vai deixar de estar disponível, nenhum vai despedir quem vier a ele sem torná-lo mais feliz e mais afeiçoado a si, nenhum vai permitir que alguém se despeça dele com as mãos vazias; podem ser encontrados de noite ou de dia por todos os mortais.

Nenhum deles te obrigará a morrer, todos te ensinarão; nenhum deles vai consumir os teus anos, mas te darão os seus em contribuição; de nenhum deles será perigosa a conversa, de nenhum será fatal a amizade, de nenhum onerosa a deferência. Levarás deles tudo o que quiseres; deles não dependerá que lhes tires o máximo que possas conter.

Que felicidade, que bela velhice aguarda quem se juntou à clientela deles! Terá com quem refletir sobre questões desde as menos até as mais importantes, a quem consultar diariamente sobre si próprio, de quem ouvir a verdade sem ofensa, elogio sem adulação, terá exemplos a cuja semelhança moldar-se.

Costumamos dizer que não estava em nosso poder determinar os pais que nos caberia, dado a nós pelo acaso; mas nos é possível nascer por nosso arbítrio. Existem as famílias das mais renomadas mentes: elege à qual desejas agregar-te. Receberás não só seu nome, mas até seus bens, que não deverão ser guardados com mesquinhez e egoísmo; quanto mais os compartilhares, maiores se tornarão. Esses pensadores é que te darão uma via para a eternidade e te elevarão até aquele plano do qual ninguém decai. Esse é o único meio de prolongar a condição mortal, e até mesmo de convertê-la em imortalidade. Honras, monumentos, tudo o que por decretos a ambição impôs ou por seus esforços erigiu é logo destruído, nada uma velhice prolongada deixa sem demolir e remover. Mas ela não pode causar dano àquilo que a sabedoria consagrou. Nenhum lapso temporal poderá aboli-lo nem diminuí-lo; a época seguinte e a que sempre virá mais adiante contribuirão para venerá-lo, pois que de fato a inveja frequenta o que lhe está próximo, e de modo mais franco admiramos o que está situado longe.

Portanto, a vida do sábio é bastante extensa. Não há para ele o mesmo limite que para os outros. Só ele está liberado das leis do gênero humano, todos os séculos estão submetidos a ele tal como a um deus. Transcorreu certo tempo: ele o abarca na memória; está em curso: ele o utiliza; está por vir: ele o antevê. O que torna longa sua vida é a concentração de todos os tempos em um único."


Fonte: Seneca, Sobre a Brevidade da Vida, Penguia & Companhia das Letras, Página 28-30, Parágrafo 3 (cap 14) ao capítulo 15 inteiro.

Extraído por: Charis D'Cruz

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