O Homem e a Morte: Seneca - Parte 18

fevereiro 10, 2021 , , 0 Comments


"[...]Grande parte da vida escapa aos que fazem poucos, a maior parte, aos que nada fazem e a vida inteira, aos que fazem o que não importa. [...] De fato, nos deixamos enganar quanto a isso, porque vemos a morte mais à frente: grande parte dela já está no passado. Tudo na existência que ficou para trás pertence à morte. logo, meu caro Lucílio, faz o que me escreves que vens fazendo: abraça todas as horas. Assim, acontecerá de dependeres menos do amanhã se tiveres tomado o hoje em tuas mãos. Avida transcorre enquanto é adiada." - Sêneca, Edificar-se para a morte (Das Cartas Morais a Lucílio), Editora Vozes, Pág 15-16

"Ora, não pode estar preparado para a morte quem apenas começa a viver. É preciso agir para que tenhamos vivido o bastante: ninguém que está iniciando a vida justo agora consegue isso.

Não deves pensar que eles são poucos: são praticamente todos. Na verdade, uns estão começando bem na hora de partir. Se julgas isso surpreendente, acrescentarei algo que te surpreenderá mais: uns deixaram de viver antes que começassem." - Sêneca, Edificar-se para a morte (Das Cartas Morais a Lucílio), Editora Vozes, Pág 31

"É incerto em que lugar te aguarda a morte. Desse modo, aguarda tu por ela em todo lugar.

[...] Nesse meio-tempo, vai nos prestar o serviço Epicuro, que diz: "Medita sobre a morte". Ou, se o sentido pode assim ficar mais claro para nós: "É muito importante aprender com a morte".

[...] "Medita sobre a morte". Quem diz isso está nos mandando meditar sobre a liberdade. Quem aprendeu morrer desaprendeu a servir: está acima de toda autoridade, pelo menos, fora do alcance dela. Que lhe importa o cárcere e a prisão e o confinamento? Tem uma porta aberta. Só uma corrente nos mantém atados: o amor à vida, que não é preciso abandonar, mas reduzir, para que, se a situação em algum momento exigir, nada nos detenha ou impeça de estarmos preparados a fazer imediatamente o que mais cedo ou mais tarde deve ser feito." - Sêneca, Edificar-se para a morte (Das Cartas Morais a Lucílio), Editora Vozes, Pág 44-45


"Vi Aufídio Basso, um homem excelente, alquebrado, lutando contra a idade, mas ela já pesa demais sobre ele para que possa se levantar. A velhice abateu-o com todo o peso do universo. Sabes que ele sempre teve um corpo delicado e enxuto: conservou-o assim por muito tempo e, verdade seja dita, com alguns reparos, mas abandonou-o subitamente.

Do mesmo modo que um navio que faz água resiste a uma ou outra fenda, mas quando começa a soltar e a ceder em muitos pontos não há como ir em socorro da embarcação que se desfaz, também um corpo desgastado pode aguentar e sustentar a debilidade até certa medida. Quando, tal como um edifício em ruínas, toda argamassa se desprega e, enquanto se repara uma, outra se desprende, é preciso buscar a porta de saída.

Nosso prezado Basso, contudo, tem o espírito bem-disposto. A filosofia assegura isso: estar alegre em vista da morte e corajoso e feliz independente da condição física, e sem fraquejar embora esteja enfraquecido. Um grande capitão navega mesmo com a vela rasgada e, se ficou desguarnecido, ainda assim, põe o que sobrou da embarcação no rumo certo. É isso o que faz o nosso prezado Basso, e aguarda o próprio fim com tal espírito e semblante que julgarias aguardar o fim de outra pessoa com excessiva calma.

É uma coisa importante esta, Lucílio, e que precisa de tempo para se aprender: partir de bom grado quando chegar a hora inevitável. Outros tipos de morte trazem um misto de esperança: uma doença termina; um incêndio é extinto; um desabamento poupou os que ele parecia a ponto de esmagar; com a mesma força que os sorvia, o mar lançou ilesos os que ele havia tragado; o soldado recolheu sua espada já a ponto de degolar um homem. Mas não tem o que esperar quem a velhice conduz à morte, a esta única coisa ele não pode se opor. Nenhum outro tipo de morte é mais suave para o ser humano, nem mais demorado.

O nosso prezado Basso me parecia acompanhar o próprio funeral e participar do seu sepultamento e ainda viver como quem supera a si mesmo e, sabiamente, encarar a própria ausência. Pois fala muito acerca da morte, e faz isso com dedicação para nos persuadir que, se o assunto traz algum incômodo ou temor, é por erro de quem está morrendo, não da morte: o momento dela mesma não é mais penoso que o depois.

Ora, é tão insano quem teme o que não está para sofrer quanto quem teme o que não está para sentir. Ou alguém crê ser possível que ela, que põe fim às sensações, nos faça sentir? Ele afirma: “Logo, a morte está a tal ponto além de todo mal que está além de todo medo dos males”.

Estas coisas, bem sei, foram tantas vezes ditas e serão tantas vezes ditas, mas nem quando eu as lia me foram igualmente úteis, nem quando as ouvia de pessoas que diziam que não eram temíveis coisas das quais não tinham medo: mas ele impôs a mim sua autoridade, uma vez que falava do avizinhar-se da própria morte.

Direi, de fato, o que sinto: considero mais corajoso quem já se encontra na ocasião da morte do que quem está nas cercanias dela. De fato, a presença da morte dá ânimo até aos inexperientes para não evitar o inevitável. É assim que o gladiador, amedrontadíssimo durante todo o combate, exibe a garganta ao adversário e posiciona em si mesmo a espada hesitante. Mas a morte, que, embora próxima, ainda está para chegar, demanda um longo fortalecimento do espírito, que é mais raro e apenas o sábio pode exibir.

Desse modo, eu o ouvia com muito boa vontade, como se ele estivesse proferindo uma sentença a respeito da morte e qual era a natureza dela, como quem estivesse informando porque a examinou de mais perto. Suponho que tu confiarias mais, darias mais peso, se alguém tivesse ressuscitado e relatasse, por experiência própria, que não há nada de mal na morte. Quanto traz de perturbação o assédio da morte, vão te contar muito bem os que ficaram perto dela, os que a viram chegando e a receberam.

Podes incluir entre eles Basso, que não quis que fôssemos enganados. Diz ele que é tão tolo quem teme a morte como quem teme a velhice, pois, do mesmo modo que a velhice vem depois da adolescência, a morte vem depois da velhice. Quem não quer morrer não quis viver. De fato, a vida nos foi dada com a condição da morte. É um caminho para a morte e, por isso, é insano temê-la, porque o que é certeza apenas se aguarda, teme-se o que é duvidoso.

A morte é necessariamente equitativa e invencível: Quem pode se queixar de estar na mesma condição de todos? Ora, o pressuposto da equidade é a igualdade. Mas agora é supérfluo defender a causa da natureza, que quis que a nossa lei não fosse outra que a sua própria: tudo o que criou, desfaz, e tudo o que desfez, volta a criar.

Além do mais, se coube a alguém que a velhice se despedisse dele gentilmente, não sendo expulso da vida de repente, mas subtraído dela pouco a pouco – ah, como ele não deve agradecer a todos os deuses porque, satisfeito, foi levado ao descanso inevitável ao ser humano, gratificante ao extenuado! Vês certos homens que desejam a morte e mais até do que se costuma implorar pela vida. Não sei avaliar qual dos dois me dá mais ânimo, se os que demandam a morte ou os que a aguardam alegres e serenos, uma vez que os primeiros fazem algo que às vezes decorre da raiva e da indignação repentina enquanto a tranquilidade dos últimos decorre de um firme juízo. Há quem, irado, chegue à morte; quando a morte está chegando, ninguém a aceita alegre, exceto quem há muito vinha se dispondo para ela.

Logo, confesso que eu ia com mais frequência a esse homem, por muitas razões tão caro a mim, para saber se eu o encontraria sempre o mesmo ou se diminuiria, com a força do corpo, seu vigor espiritual, mas este crescia nele como costuma ser mais notada a alegria dos aurigas quando se aproximam da vitória após a sétima volta.

Com efeito, ele dizia, seguindo os preceitos de Epicuro, primeiro, que esperava não haver dor alguma naquele último suspiro, contudo, se houvesse, encontraria consolo bastante na sua brevidade. Dizia que não há, de fato, dor prolongada que seja intensa. Ademais, dizia que, mesmo na exata separação da anima e do corpo, se isso acontecesse com sofrimento,

viria em seu socorro que, após essa dor, ele não poderia mais ter dor. Ora, dizia não duvidar que a anima de um velho estivesse pronta a sair pela boca e que sem muita força fosse extraída do corpo. “O fogo que tomou conta de material inflamável precisa de água para ser extinto e, às vezes, só sob ruínas; aquele que se abandona sem alimentos apaga-se por conta própria.”

De boa vontade ouço essas coisas, meu caro Lucílio, não como novidades, mas como que levado a uma situação real. Mas então? Já não testemunhei muitos interrompendo a vida? Eu mesmo os vi, mas tenho em mais alta conta os que chegam à morte sem ódio da vida e a aceitam, não a atraem.

Com efeito, ele dizia que sofremos esse tormento por culpa nossa, porque ficamos abalados tão logo acreditamos que a morte está próxima de nós. De fato, de quem ela não está próxima, à espreita em todo lugar, a cada momento? “Mas devemos considerar, tão logo pareça ocorrer algum risco de morte, o quanto estão mais próximos outros que não são temidos”, ele disse.

Um inimigo ameaçava alguém com a morte, uma congestão se adiantou. Se quisermos distinguir as causas do nosso medo, descobriremos que umas são, outras parecem ser. Não tememos a morte, mas o pensamento sobre a morte. De fato, estamos sempre à mesma distância dela. Assim, se devemos temer a morte, devemos temê-la sempre. De fato, que momento está isento da morte?

Mas devo temer mesmo é que odeies cartas tão longas mais do que a própria morte. Desse modo, vou finalizar. Tu, contudo, pensa sempre na morte para que não a temas nunca." - Sêneca, Edificar-se para a morte (Das Cartas Morais a Lucílio), Editora Vozes, Pág 46-51 Rever se precisa da carta inteira ou só alguns trechos.


"Se tivesse nascido na Pártia, estiraria o arco logo criança; se na Germânia , arremessaria o dardo delgado desde menino; se fosse do tempo de nossos avós, teria aprendido a cavalgar e a perfurar de perto o inimigo. São estas coisas que a disciplina de sua própria gente determina e comanda a cada indivíduo.

Então, sobre o que ele deve refletir? Sobre o que funciona contra todas as armas, contra todo tipo de inimigo: o desdém pela morte. Não há dúvida que ela tem algo de terrível a ponto de incomodar nosso espírito, programado pela natureza a amar a si mesmo. De fato, nem seria necessário treiná-lo e afiá-lo contra o que enfrentaríamos por um impulso da vontade, já que todos têm o instinto de preservação.

Ninguém precisa aprender a se deitar de bom grado num campo florido se for necessário, mas é duramente preparado para que sua lealdade não se renda a tormentos, de modo que, se necessário, ainda que eventualmente ferido, mantenha-se em pé fazendo a vigília da trincheira e não se apoie nem mesmo em sua lança, porque o sono costuma surpreender nessa hora quem se reclina num apoio qualquer. Não há incômodo algum na morte, pois, isso a que ela causasse incômodo, precisaria ser.

Mas se tão grande desejo por uma existência mais longa te domina, pensa que não se acaba nada dessas coisas que sob as nossas vistas desaparecem e se ocultam na natureza, de onde surgiram e para onde logo seguirão: as coisas cessam, mas não perecem, e a morte, que tanto tememos e repudiamos, interrompe a vida, não a toma para si. Voltaremos à luz um dia, que muitos repudiariam se ele não os trouxesse já esquecidos do que se passou.

Depois, explicarei em mais detalhes como todas as coisas que dão a ideia de perecer são transformadas. Deve partir de bom grado quem está pronto a regressar. Observa o ciclo das coisas que retornam a si mesmas: verás que nada neste mundo se extingue, mas alternadamente declina e ressurge. O verão passou, mas o próximo ano somará mais um. O inverno acabou: os meses certos trarão mais um. A noite encobriu o dia, mas o dia, de imediato, empurrará a noite. As estrelas repetem o percurso que fizeram: continuamente uma parte do céu se eleva, uma parte submerge.

Por último, se eu acrescentar apenas uma consideração, concluirei a carta: nem bebês, nem meninos, nem deficientes mentais temem a morte, e é uma tremenda vergonha se a razão não nos garante a mesma segurança à qual a estupidez conduz." - Sêneca, Edificar-se para a morte (Das Cartas Morais a Lucílio), Editora Vozes, Pág 54-56



"Não tenho tempo para essas tolices, tenho um grande problema em mãos. O que posso fazer? A morte me persegue, a vida me escapa.

Ensina-me a enfrentar isto. Faz que eu não fuja da morte, que a vida não fuja de mim. Exorta-me a enfrentar as dificuldades, a enfrentar o inevitável. Diminui minhas angústias quanto ao tempo: ensina-me que o bem da vida não está na sua duração, mas no seu proveito; que pode acontecer – e acontece frequentemente – de ter vivido pouco alguém que teve vida longa. Quando eu estiver prestes a dormir, diz-me: “Pode ser que não acordes”. Diz-me, já acordado: “Pode ser que não durmas mais”. Diz-me quando eu estiver saindo: “Pode ser que não regresses”. Diz-me quando eu estiver voltando: “Pode ser que não saias de novo”.

Erras se pensas que apenas na viagem marítima a distância entre a vida e a morte é mínima: em todo lugar é igualmente tênue esse intervalo. Não é que em toda parte a morte se revela assim tão próxima, é que ela está assim tão próxima em toda parte." - Sêneca, Edificar-se para a morte (Das Cartas Morais a Lucílio), Editora Vozes, Pág 60-61



"'Que é isso?' – eu digo – 'Por que tantas vezes a morte faz experimentos comigo? Que faça: tive uma longa experiência com ela'. Tu dizes: 'Quando?' Antes que eu nascesse. A morte é não ser. Já sei como é: haverá depois de mim o que houve antes de mim. Se há nessa nossa condição, algum tormento, é inevitável que tenha havido também antes que viéssemos à luz, mas naquela ocasião não sentimos nenhum desconforto.

Peço-te que me digas se não é muito estúpido que alguém estime que uma lamparina valha menos depois de apagada do que antes de ser acesa? Nós também somos chamas que se acendem e se apagam: nesse meio tempo, sofremos um tanto; nos extremos, a tranquilidade é profunda. Meu caro Lucílio, se não estou enganado, é nesse ponto, de fato, que erramos, porque julgamos que a morte é o que vem a seguir, embora ela seja tanto o que veio antes como o que virá a seguir. Tudo o que houve antes de nós é a morte. De fato, que importa que não sejas nem o começo nem o fim, uma vez que o resultado de um e de outro é o não ser?

Entende isto da minha parte: não tremerei na hora derradeira, já estou preparado, nada planejo para um dia inteiro. Louva e imita o homem que não reluta em morrer, embora aprecie viver. É preciso ter coragem para partir quando se vai ser expulso? Aqui também é preciso coragem: estou efetivamente sendo expulso, mas é como se eu estivesse saindo. E justamente por isso um sábio nunca é expulso, porque ser expulso é ser enxotado de um lugar contrariado: o sábio nada faz contrariado, ele escapa ao inevitável porque deseja o que está para lhe ser imposto." - Sêneca, Edificar-se para a morte (Das Cartas Morais a Lucílio), Editora Vozes, Pág 63-64)



"Todas as coisas que vemos ou tocamos, Platão não as conta entre aquelas que ele julga que propriamente 'são'. De fato, elas estão num fluxo e num constante processo de perdas e ganhos. Nenhum de nós é na velhice o mesmo que foi quando jovem. Nenhum de nós é pela manhã o mesmo que foi na véspera. Nossos corpos são levados pelo fluxo dos rios: tudo o que vês passa com o correr do tempo, nada do que vemos permanece. Eu mesmo, enquanto falo da mudança das coisas, já mudei.

É isto que Heráclito diz: 'No mesmo rio, entramos e não entramos duas vezes'. De fato, o nome do rio permanece o mesmo, mas a água passou. Isso fica mais claro com relação ao rio do que com relação ao ser humano, mas uma correnteza não menos veloz também nos arrasta. E é por isso que me espanta a nossa insanidade de amarmos tanto essa coisa muitíssimo fugaz que é o corpo e termos medo de morrer algum dia, ainda que cada novo momento seja a morte do estado anterior. Não se deve temer que aconteça um dia o que está acontecendo diariamente!" - Sêneca, Edificar-se para a morte (Das Cartas Morais a Lucílio), Editora Vozes, Pág 77)


"Desse modo, darei minha opinião se convém tratar com desprezo a extrema velhice e não aguardar pelo fim, mas causar o próprio fim: está tão perto de ser um medroso quem fica parado à espera do destino como é um dependente do vinho aquele que esgota a ânfora e ainda sorve a borra.

Mas vamos investigar o assunto: a parte final da vida é uma de duas coisas, ou é a borra ou é algo levíssimo e puríssimo, isso se a mente estiver ilesa, se os sentidos intactos colaborarem com o espírito e o corpo não estiver decrépito e já meio-morto. De fato, importa muito se alguém prolonga a vida ou a morte.

Porém, se o corpo está inútil para atividades, por que não convirá expurgar o espírito sofredor? E talvez se deva fazê-lo um pouco antes do que o necessário para que não sejas incapaz de fazê-lo quando houver necessidade. E visto que é um perigo maior viver mal do que morrer logo, é tolo quem, ao custo de uma oferta modesta do seu tempo, não zera o risco de uma grande eventualidade. Poucos a velhice muito longa levou à morte sem incapacitá-los. A muitos coube uma vida inerte, de invalidez. Então, julgas que seja mais cruel perder um pouco da vida do que o direito de pôr fim a ela?

Não me escutes contrariado, como se esta minha opinião já se referisse a ti, e avalia o que vou dizer: não abrirei mão da velhice se ela me preservar integralmente, íntegro, contudo, naquela que é a melhor parte de mim. Mas se ela começar a abalar minha mente, se afetar partes dela, se não me deixar a vida, mas a anima, abandonarei o edifício pútrido e em ruínas.

Não será com a morte que escaparei de uma doença, desde que tratável e não prejudicial ao espírito. Não usarei contra mim as minhas mãos por causa da dor: morrer assim é ser derrotado. Contudo, se eu souber que terei que suportá-la para sempre, partirei, não por causa dela mesma, mas porque será para mim um obstáculo a tudo pelo que se vive. É fraco e covarde quem morre por causa da dor, é tolo quem vive em função da dor.

Mas me demoro a partir. Além do mais, o assunto pode tomar o dia todo. E como será capaz de pôr fim à vida quem não é capaz de pôr fim a uma carta? Então, passar bem! – lerás isso com mais prazer do que minhas meras palavras sobre a morte." - Sêneca, Edificar-se para a morte (Das Cartas Morais a Lucílio), Editora Vozes, Pág 80-81



"Deixemos de desejar o que no passado desejamos! Eu, certamente, estou fazendo isso para que não deseje, já idoso, o mesmo que desejei menino. Só nisso se vão meus dias. Só nisso, minhas noites. Esta é minha tarefa, esta reflexão: pôr fim a antigos vícios. Faço isso para que meu dia tenha o valor de toda uma vida. E – por Hércules! – não o tomo como o último, mas o encaro como podendo muito bem ser o último.

É com este espírito que te escrevo esta carta, admitindo que a morte possa me chamar exatamente enquanto a escrevo. Estou preparado para partir e posso desfrutar a vida justamente pelo fato que não fico dependendo demais do quanto possa durar esse futuro. Antes da velhice, cuidei de viver bem. Na velhice, de que eu morra bem. Ora, morrer bem é morrer de bom grado.

Presta atenção para que nunca faças algo contrariado. Tudo que for inevitável a quem costuma recursar-se não é inevitável a quem aceita. É isso que eu digo, quem recebe ordens de bom grado, escapa da parte mais amarga da escravidão: fazer o que não quer. Não é desafortunado quem faz algo obrigado, mas quem o faz contrariado. Desse modo, devemos pôr em harmonia nosso espírito para que desejemos o que as circunstâncias exigirem de nós e, acima de tudo, para que reflitamos, sem tristeza, sobre o nosso fim.

Devemos nos preparar mais para a morte do que para a vida. É suficiente o que a vida nos oferece, mas ficamos ávidos por suas dádivas: parece que nos falta algo e vai parecer sempre. Não são nem anos nem dias que garantem termos vivido o suficiente, mas nosso espírito. Vivi o suficiente, caríssimo Lucílio. Satisfeito, espero pela morte." - Sêneca, Edificar-se para a morte (Das Cartas Morais a Lucílio), Editora Vozes, Pág 82-83


"Recebo com tristeza a morte do teu amigo Flaco, contudo, não quero que a recebas tu com uma dor desmedida. Que não te condoas, nem ousarei exigir – e sei que seria o melhor! Mas quem poderá contar com tal força espiritual a menos que já se encontre fora do alcance da fortuna? Também esse homem sente uma agulhada numa tal situação, mas apenas uma agulhada. Ora, podemos ser perdoados por termos chegado às lágrimas se elas não correram em excesso, se fomos nós mesmos que as reprimimos. Que os olhos não fiquem nem secos nem encharcados com a perda de um amigo: deve-se chorá-lo, mas não desfazer-se em lágrimas.

Ainda te parece que imponho uma lei dura sendo que o maior dos poetas gregos limitou o direito de prantear a um só dia e afirmou que mesmo Níobe tinha pensado em se alimentar? Indagas de onde vêm as lamentações? De onde vem o pranto incontido? Buscamos dar provas da nossa saudade por meio de lágrimas, e não nos submetemos à dor, mas a ostentamos. Ninguém fica triste para si mesmo. Desoladora tolice! Existe também a ambição da dor.

“E então? Vou me esquecer do meu amigo?” – é o que tu dizes. A tua promessa de lembrar-te dele durará pouco se depender da tua dor: logo um acontecimento fortuito qualquer vai levar um riso a esse rosto. Não projeto isso para um futuro distante, quando toda saudade se ameniza, quando mesmo o luto mais amargo se acomoda: assim que deixares de vigiar-te, essa imagem da tristeza desaparecerá. Agora tu mesmo és o guardião da tua dor, mas ela também escapa ao seu guardião, e quanto mais amarga for, mais rápido passa.

Devemos tornar agradável a recordação das pessoas que perdemos. Ninguém volta espontaneamente seu pensamento para o que lhe causa tormento. Como isso é inevitável, que o nome das pessoas amadas que perdemos então nos venha à mente com algum pesar, mas que também esse pesar tenha uma dose de prazer. 

Pois, como costumava dizer o nosso Átalo: “É agradável a lembrança dos amigos falecidos assim como são suavemente ásperos certos frutos, como o amargor próprio do vinho envelhecido além da conta nos deleita. Certamente, depois de um tempo, tudo o que nos afligia se extingue e alcançamos o puro prazer”.

E ainda, se lhe damos crédito: “Pensar nos amigos saudáveis é desfrutar de mel e doce. É saboroso, mas um tanto acre, rememorar os que se foram. Ora, quem vai negar que também essas coisas acres, tendo algo de áspero, aguçam o apetite?”

Já eu não sinto o mesmo. Para mim, pensar nos amigos falecidos é doce e suave: de fato, os tive como se prestes a perdê-los; depois que os perdi, é como se os tivesse. Logo, prezado Lucílio, aplica teu senso de justiça, deixa de interpretar erroneamente a benesse da fortuna: ela tirou, mas também deu.

Desfrutemos avidamente dos amigos justamente porque é incerto por quanto tempo poderemos contar com isso. Pensemos sobre quantas vezes teremos que deixá-los ao partirmos numa longa viagem, quantas vezes, estando num mesmo lugar, não os veremos: entenderemos que nós perdemos muito tempo quando estavam vivos.

Mas pode-se tolerar quem trata os amigos com extrema negligência, cumpre o luto com extrema dor e não ama ninguém exceto se o perdeu? Então, os pranteia com mais ênfase justamente porque teme haver dúvidas se os amou; busca dar indícios tardios do próprio afeto.

Se temos outros amigos que mal valem de consolo para a perda de um só, nossa estima por eles é pouca e os temos em baixa conta. Se não temos outros amigos, fizemos contra nós mesmos uma agressão maior do que a que recebemos da fortuna: ela nos tirou um só, nós não fizemos nenhum.

Segue que não amou de verdade nem mesmo uma pessoa quem não conseguiu amar mais que uma. Se alguém, espoliado, depois que perdeu sua única túnica, prefere se lamentar a procurar um modo de escapar do frio e encontrar algo que lhe cubra os ombros, ele não te parecerá muito estúpido? Sepultaste quem amavas, busca alguém para amar. Vale mais substituir o amigo que chorar por ele.

Sei que já foi bem repisado o que vou acrescentar, contudo, nem por isso omitirei o que foi dito por todos: “Não há dor que o tempo não cure”. Ora, é muito vergonhoso que a cura para o sofrimento de um homem prudente seja estar cansado de sofrer. Prefiro que tu abandones a dor a que ela te abandone. Então, cessa de fazer o quanto antes isso – sofrer – que, mesmo que queiras, não serás capaz de fazer por muito tempo.

Um ano de luto foi concedido às mulheres pelos nossos antepassados: não para que lastimassem a perda por tanto tempo, mas para que não fosse mais longa. Para os homens, não há um período oficial porque nenhum seria honroso. Dentre essas mulheres que a custo são arrancadas à pira funerária, a custo desgrudadas do cadáver, podes citar-me qual derramou lágrimas durante um mês inteiro? Nada se torna odioso tão rapidamente quanto uma dor: sendo recente, encontra quem a console e outros se juntam a ela; sendo persistente, é verdadeiramente risível, e com razão, pois ou é simulada ou é estúpida.

Sou eu que te escrevo estas coisas, eu que chorei descontroladamente pelo caríssimo Aneo Sereno a ponto de me encontrar – coisa que eu não queria de jeito nenhum – entre os exemplos dos que foram vencidos pela dor. Contudo, hoje condeno o que fiz e entendo que a causa principal de têlo lastimado assim foi que eu jamais havia considerado que ele pudesse morrer antes de mim. Só me ocorria que ele era mais jovem e muito mais jovem que eu. Como se houvesse ordem no destino!

Desse modo, devemos pensar assiduamente tanto na nossa condição mortal como na de todos que amamos. Na época, eu deveria ter dito: “Meu querido Sereno é mais jovem. E isso importa? Deve morrer depois de mim, mas pode ser antes”. Visto que não o fiz, subitamente a fortuna me pegou desprevenido. Agora penso que todas as coisas são não apenas mortais, mas mortais de acordo com uma lei incerta: pode acontecer hoje o que pode acontecer sempre.

Logo, caríssimo Lucílio, devemos pensar que em breve chegaremos aonde lamentamos que ele tenha chegado. E talvez, se é verdade o que nos transmitem os sábios e algum lugar nos aguarda, pensamos que pereceu quem apenas nos precedeu." - Sêneca, Edificar-se para a morte (Das Cartas Morais a Lucílio), Editora Vozes, Pág 84-88


"Além disso, do mesmo modo que nem sempre é melhor uma vida mais longa, é sempre pior uma morte prolongada. Em nenhuma situação mais do que na morte devemos satisfazer a disposição do nosso espírito. Deve-se partir recorrendo ao que nos motiva: quer se escolha a espada, quer a forca, quer um veneno que toma nossas veias, deve-se seguir em frente e romper os vínculos com a servidão. Todo mundo precisa buscar aprovação também de outras pessoas para sua vida, mas apenas a própria para sua morte: ótima é a morte que lhe agrada.

É estúpido que se pense: “Fulano dirá que agi com pouca bravura, beltrano, que agi com muita precipitação, sicrano, que havia um tipo de morte mais convincente”. Queres pensar que essa é uma decisão que não é afetada pelo que dizem! Tenha uma coisa em vista, que escapes o mais rápido possível da fortuna. De qualquer forma, haverá quem faça um julgamento negativo do que fizeste.

Encontrarás até mesmo uns que se professam sábios que repudiam o uso da violência contra a própria vida e julgam que é um ato nefasto uma pessoa tornar-se seu próprio algoz: deve-se aguardar a hora da partida que a natureza decidiu. Quem diz isso não enxerga que ele mesmo está bloqueando o caminho para a liberdade: o que a lei eterna fez de melhor foi ter nos dado entrada única para a vida, mas muitas saídas.

Eu devo aguardar a crueldade ou de uma doença ou de um homem embora possa partir em meio à tormenta e dissipar as adversidades? Essa é a única coisa de que não podemos nos queixar na vida: ela não segura ninguém. A condição humana é bem resolvida porque só é infeliz quem quer. Estás satisfeito? Continua a viver. Não estás satisfeito? Podes voltar para o lugar de onde vieste.

Para aliviar uma dor de cabeça, com frequência tiraste sangue: perfura-se uma veia para serenar o corpo. Não é preciso um corte amplo para talhar o abdome: com um canivete, abre-se a via em direção àquela grande liberdade e num instante se instala a serenidade. Logo, o que é que nos faz indolentes e inertes? Nenhum de nós fica pensando que algum dia deverá abandonar esta morada. Assim é que a comodidade do lugar e o costume, mesmo em meio a agruras, retêm antigos inquilinos.

Queres ser livre frente a este corpo? Ocupa-o como se estivesses para mudar-te. Tenha sempre presente que algum dia essa coabitação vai te faltar: estarás mais forte na necessidade de abandoná-la. Mas como pode o próprio fim passar pela cabeça das pessoas que ficam cobiçando todas as coisas sem fim?" - Sêneca, Edificar-se para a morte (Das Cartas Morais a Lucílio), Editora Vozes, Pág 102-103


Epístola 70


"Chegará o dia em que a prática com esse único assunto será cobrada. Não há razão para considerar que apenas grandes homens tiveram vigor para romper as correntes da servidão humana. Não há razão para julgar que isso só possa ser realizado por Catão, que arrancou com a própria mão a alma que não tinha libertado pela espada. Homens de baixíssima condição puseram-se em segurança com enorme determinação, e quando não lhes era permitido morrer como queriam nem escolher por conta própria os instrumentos para sua morte, pegaram coisas que estavam à vista – e que por natureza não eram perigosas – e, com sua força, delas fizeram armas.

Recentemente num espetáculo com animais, um dos germanos, enquanto se preparava para as apresentações matinais, se afastou para aliviar-se – em nenhuma outra situação era-lhe permitido ficar isolado, sem vigilância. Ali, o pedaço de pau com uma esponja grudada para limpar as partes íntimas, ele enfiou todo na garganta e, bloqueada a traqueia, sufocou. Isso foi fazer uma afronta à morte. Simples assim: pouco limpo e pouco decente. O que é mais estúpido do que ser exigente demais ao morrer?

Que homem forte! Que homem digno de que lhe fosse dada a escolha do próprio destino. Com que força ele teria usado a espada, com que coragem ele teria se lançado nas profundezas do mar ou de um penhasco escarpado. Desprovido de tudo, de algum modo encontrou para si a morte e a arma adequadas, a fim de que tu saibas que nada além do querer é obstáculo ao morrer. Que se pense o que quiser sobre o ato desse homem determinadíssimo, desde que fique assente que é preferível a morte mais suja à mais limpa servidão.

Uma vez que comecei a usar exemplos rebaixados, vou me manter nessa linha, pois qualquer um exigirá mais de si mesmo se constatar que este nosso objeto pode receber o desdém até mesmo dos que sofrem muito desdém. Catões e Cipiões e outros dos quais nos acostumamos a ouvir falar com admiração, julgamos impossível imitá-los, mas eu mostrarei que há tantos exemplos de virtude no espetáculo com animais como no comando das guerras.

Um homem destinado à apresentação matinal, quando recentemente estava sendo transportado entre vigias, meneava como se dominado pelo sono, baixando tanto a cabeça até que a inserisse entre os raios de uma roda, e se manteve na posição o suficiente até que quebrasse o pescoço num giro da roda: escapou no mesmo veículo em que era levado ao castigo.

Nada impede quem deseja se desligar e partir: a natureza nos vigia em campo aberto. Quem não tiver uma necessidade premente, que investigue uma partida suave. Quem tiver às mãos muitos meios de resgatar a si mesmo, que faça uma escolha, levando em conta, de preferência, um meio que possa libertá-lo. Quem dificilmente tiver uma oportunidade, que pegue a primeira como se fosse a melhor, ainda que inédita, uma novidade. Não faltará engenhosidade para alcançar a morte a quem não tiver faltado ânimo.

Vês como mesmo os escravos mais inferiores, quando estimulados pela dor, se animam e enganam os vigias mais atentos? O grande homem é quem não apenas determinou a própria morte, mas a encontrou. Desse tipo de espetáculo popular te prometi muitos exemplos.

Na segunda apresentação de naumaquia , um dos bárbaros afundou na própria garganta a lança inteira que havia recebido para combater os adversários. Ele dizia: “Por quê? Por que não escapo imediatamente de todos os tormentos, de todos os ultrajes? Por que eu, armado, aguardo a morte?” Foi tão mais bela esta apresentação que as demais quanto é mais honroso ao homem aprender a morrer do que a matar.

Então? Esse ânimo que os perversos e criminosos têm não terão também aqueles instruídos para tais situações pela longa reflexão e razão, mestra de todas as coisas? Ela nos ensina que há vários acessos para o destino, mas um mesmo fim. Ora, não importa a partida, mas a chegada.

Essa mesma razão orienta que, se te for permitido, morras <de um modo que te agrade, mas se não o for,> do modo que puderes, e que usurpes qualquer coisa que sirva no ataque contra ti. Viver do roubo é desonesto, por outro lado, é belíssimo morrer em razão do roubo." - Sêneca, Edificar-se para a morte (Das Cartas Morais a Lucílio), Editora Vozes, Pág 104-106


Epístola 78


"Dizes que sofres com expectorações intensas e febres fracas que acompanham as tosses prolongadas tornadas crônicas, o que para mim é mais molesto porque já experimentei esse tipo de enfermidade, que aos primeiros sintomas desdenhei (até então, minha adolescência era capaz de suportar adversidades e de enfrentar doenças obstinadamente), em seguida, capitulei e fui levado a tal extremo que eu mesmo desintegrava, reduzido à extrema magreza.

Tantas vezes tive o impulso de interromper minha vida: a idade avançada do meu afabilíssimo pai me reteve. Pensei, de fato, não em quanta força eu teria para morrer, mas em quanta força ele não teria para suportar minha ausência. Desse modo, determinei-me a viver. De fato, às vezes, viver também é para os fortes.

Vou falar o que, então, me serviu de consolo, mas antes devo dizer que essas mesmas coisas, com as quais me acalmava, tiveram a eficácia de um medicamento. Consolações morais funcionam como um remédio, e é útil também ao corpo o que quer que tenha fortalecido o espírito. Nossos estudos foram, para mim, uma salvação. Atribuo à filosofia ter me erguido, ter me recuperado. É a ela que devo a vida e nada menos do que isso devo a ela.

Ora, contribuíram muito para a minha boa disposição também os amigos, que me aliviavam com suas exortações, suas noites de vigília, suas conversas. Nada igual ao afeto dos amigos, Lucílio, tu que és o melhor dos homens, para restaurar e ajudar um doente, nada igual para extirpar a expectativa e o medo da morte: eu não julgava que fosse morrer visto que os deixaria vivos. O que estou dizendo é que eu supunha que ainda viveria, não com eles, mas por meio deles: não tinha a impressão que fosse exalar
meu último suspiro, mas que a eles o entregaria. Essas coisas me deram vontade de ajudar a mim mesmo e de suportar cada tormento. De resto, é muito lamentável, depois que se abriu mão do ânimo de morrer, não ter ânimo de viver.

Logo, recorre também tu a estes remédios. O médico te orientará o quanto deves caminhar, o quanto deves te exercitar; que não cedas à inércia, à qual se rende a indisposição; que leias mais alto e exercites a respiração, cujas vias aéreas e pulmões se esforçam; que velejes e ponhas em movimento teus órgãos com o doce balanço; quais alimentos consumir e, quanto ao vinho, quando deves recorrer a ele para ter forças, quando deves te abster dele para que não provoque e agrave a tosse. Já eu, o que te receito é um remédio não apenas para esta doença, mas para uma vida inteira: desdenha a morte. Nada é triste quando escapamos ao medo dela.

Estas três coisas pesam em toda doença: o medo da morte, a dor do corpo, a interrupção dos prazeres. Já se falou o bastante da morte. Só quero dizer uma coisa: este medo não é característico da doença, mas da nossa natureza. Muitos tiveram a morte adiada por uma doença e ela os salvou porque parecia que iam perecer. Morrerás não porque adoeces, mas porque vives. Essa condição te acompanha mesmo curado. Uma vez que te recuperaste, escapaste não à morte, mas a uma enfermidade.

Voltemo-nos agora para aquilo que é o incômodo propriamente: a doença traz grandes torturas, mas se tornam toleráveis pelos intervalos entre elas, pois uma dor extremamente intensa tem seu fim. Ninguém pode ter muita dor por muito tempo. A natureza, que muito nos ama, assim nos programou de modo a que a dor nos fosse ou tolerável ou breve." - Sêneca, Edificar-se para a morte (Das Cartas Morais a Lucílio), Editora Vozes, Pág 108-110

"Desse modo, é este o consolo para uma dor agressiva: é inevitável que a deixes de sentir se a tiveres sentido excessivamente. Ora, no sofrimento do corpo, o que faz mal aos despreparados é que não se acostumaram a contentar-se com o espírito, ocuparam-se muito do corpo. Por isso, o homem grandioso e prudente separa o espírito do corpo e se envolve muito com sua parte melhor e divina, apenas o necessário com esta queixosa e frágil.
[...]
Soma a isso que não há dor que não faça uma pausa ou, pelo menos, diminua. Soma a isso que é possível precaver-se e resistir a uma dor iminente com remédios. De fato, não há uma que não antecipe seus sinais, principalmente a que ocorre com frequência. Pode-se tolerar uma doença se a sua pior ameaça for tratada com desdém.

Não tornes tu mesmo o que já é ruim pior, e não te sobrecarregues com queixumes: é leve a dor que não se deixa impressionar. Pelo contrário, se começas a exortar a ti mesmo e a dizer “isso não é nada ou, pelo menos, é pouco, resistamos, já vai passar”, a dor será leve enquanto pensares assim. Tudo depende da impressão que temos. Não é só a ambição, a luxúria e a avareza que se baseiam nela: adoecemos de acordo com nossa impressão.

Qualquer um é tão infeliz quanto crê sê-lo. Julgo que devam ser abandonadas as lamúrias de antigas dores e palavras assim: “Ninguém jamais sofreu tanto. As torturas, os males que suportei! Ninguém supôs que eu me reergueria. Quantas vezes meus familiares choraram por mim, quantas vezes os médicos me deram por perdido. Nem os colocados sobre a mesa de tortura são assim destroçados”. Mas se essas coisas são mesmo verdadeiras, ficaram para trás. Ajuda em que relembrar dores antigas, ser
infeliz porque já o foste? Por que todos exageram o próprio sofrimento e mentem a si mesmos? Ademais, é reconfortante ter suportado o que foi amargo suportar: é natural alegrar-se com o fim do mal que te abatia. Logo, há que eliminar os dois, tanto o medo do futuro como a memória de um incômodo anterior: a última já não me diz respeito; a primeira, ainda não.

Quem se encontra numa dificuldade dessas deve dizer: 'Talvez seja agradável recordar um dia mesmo coisas assim'.  Que ele lute contra com todo ânimo: será vencido se ceder; vencerá se intentar contra a própria dor. Ora, a maioria o que faz é atrair para si a ruína à qual é preciso se opor. Isso que te oprime, que te ameaça, que te pressiona, se passares a esquivar-te dele, isso vai te perseguir e acossar mais. Se te firmares contra e quiseres resistir, será repelido.

[...]

Sinto uma dor intensa.” E então? A sensação será diferente se a suportares como uma mulherzinha? Do mesmo modo que o inimigo é mais nocivo aos que fogem, assim todo incômodo fortuito persegue mais quem vai lhe dando as costas. “Mas pesa.” Então? É para isso que somos fortes, para carregarmos o que é leve? De duas uma, queres uma doença prolongada ou uma violenta e breve? Se for prolongada, ela tem uma pausa, dá chance de recuperação, nos concede muito tempo; é inevitável que tenha um pico e desapareça. Uma doença breve e agressiva fará uma de duas coisas: ou ela se acaba ou acaba contigo. Ora, que diferença faz que ela não exista ou que eu não exista? De um jeito ou de outro, há um fim para a dor.

Será útil também que desvies para outros pensamentos o teu espírito e o afastes da dor. Pensa no que com honradez e bravura fizeste, trata contigo mesmo sobre as partes boas, resgata a memória das coisas que mais te surpreenderam, então, deve te ocorrer quem é o mais forte e vitorioso sobre a dor: aquele homem que perseverou na leitura de um livro enquanto lhe secavam as varizes, aquele que não deixou de rir quando torturadores, irritados com isso mesmo, experimentavam nele todos os instrumentos da
sua crueldade. Não será vencida pela razão a dor que foi vencida pelo riso?" - Sêneca, Edificar-se para a morte (Das Cartas Morais a Lucílio), Editora Vozes, Pág 111-114


"Creia em mim, há ocasião de ser corajoso mesmo de cama. Não apenas as armas e as frentes de batalha dão provas de um espírito enérgico e intrépido diante do terror, também sob as cobertas se revela um homem valente. Tens o que fazer: travar uma boa luta contra a doença. Se nada te força, se nada te compele, dás um belo exemplo. Teríamos tanto motivo de orgulho se fôssemos observados quando enfermos! Observa a ti mesmo, louva a ti mesmo." - Sêneca, Edificar-se para a morte (Das Cartas Morais a Lucílio), Editora Vozes, Pág 115


"Mas suportaremos facilmente todas estas coisas: a sopa, a água quente e tudo o mais que parece intolerável aos esnobes e amolecidos pelo luxo e que têm mais doente o espírito que o corpo. Deixemos apenas de ter horror à morte. Ora, deixaremos desde que conheçamos os limites do que é o bem e do que é o mal. Assim, afinal, nem a vida trará tédio, nem a morte, temor.

Por certo, o enfado consigo mesmo não pode se apoderar de uma vida que presencia tantas coisas variadas, grandiosas, divinas: é o ócio improdutivo que costuma conduzir a vida ao ódio de si. Para quem perscruta a natureza, a verdade nunca resultará um fastio, o falso é que causará enfado.

Depois, se a morte o está chamando, ainda que seja prematura, ainda que corte ao meio a existência, seu fruto é percebido como se fosse muito longa. Boa parte da natureza já não é um mistério para ele, que sabe que a honradez não aumenta com o tempo. É inevitável que toda vida pareça breve a esses que a medem pelos prazeres vãos e, por isso, sem fim.

Busca conforto nestes pensamentos e, entretanto, arranja tempo para nossas cartas. Em algum momento, haverá ocasião de nos encontrarmos e convivermos de novo: não importa quão breve, será longa sabendo aproveitá-la bem. Pois, como diz Posidônio:

'Um só dia dos homens instruídos se estende mais que a longuíssima existência dos despreparados'.

Entretanto, retém isto, fixa isto: não ceder às adversidades, não crer em facilidades, ficar de olho em cada liberalidade da fortuna como se tudo o que ela pode fazer estivesse para acontecer. Tudo o que se espera há tempos pesa menos quando chega." - Sêneca, Edificar-se para a morte (Das Cartas Morais a Lucílio), Editora Vozes, Pág 116-117

"Nosso Zenão faz uso deste silogismo: “Nenhum mal é glorioso; ora, a morte é gloriosa; logo, a morte não é um mal”. Conseguiste! Estou livre do medo, depois disso não hesitarei em oferecer meu pescoço! Não queres falar mais a sério e não levar ao riso quem está para morrer? Por Hércules! Não seria fácil te dizer qual dos dois foi mais tolo, quem julgou que eliminava o medo da morte com esse silogismo ou quem tentou refutá-lo, como se fosse pertinente.

Pois, ele mesmo propôs um silogismo contrário, partindo de que nós colocamos a morte entre os “indiferentes”, que os gregos chamam ἀδιάφορα: “Nada indiferente é glorioso; ora, a morte é algo glorioso; logo, a morte não é um indiferente”. Vês onde esse silogismo falha: a morte não é gloriosa, mas morrer com bravura é que é glorioso. E quando dizes “Nada indiferente é glorioso”, concordo contigo, mas devo dizer que nada é glorioso senão em relação aos indiferentes. Como exemplo de indiferentes (i. é, o que não é bom nem mal), cito a doença, a dor, a pobreza, o exílio, a morte.

Nada disso é glorioso em si, contudo, nada é glorioso sem isso. De fato, elogia-se não a pobreza, mas aquele homem que não se sujeita nem se curva à pobreza. Elogia-se não o exílio, mas aquele homem que partiu para o exílio com o semblante mais valente do que se tivesse enviado alguém. Elogia-se não a dor, mas aquele homem que a dor não obriga a nada. Ninguém elogia a morte, mas o homem cujo espírito a morte arrebatou antes de transtorná-lo.

Todas estas coisas não são em si honrosas nem gloriosas, mas qualquer uma delas que a virtude aborda e cultiva torna-se algo honroso e glorioso: elas estão numa posição neutra. A diferença é se foi a maldade ou a virtude que interveio. De fato, a morte, que é gloriosa no caso de Catão, é automaticamente torpe e vergonhosa no caso de Bruto. Este é, de fato, o Bruto que, à beira da morte e procurando adiá-la, apartou-se para aliviar os intestinos e, depois de chamado a morrer e obrigado a oferecer o pescoço, disse: “Oferecerei, assim eu possa viver”. Que loucura é fugir quando não se pode voltar atrás! “Oferecerei, assim eu possa viver”, disse, quase acrescentando: “Até sob o domínio de Antônio”. Que homem digno de que fosse entregue à vida!

Mas, como eu dizia, vês como a morte propriamente não é nem um bem, nem um mal: Catão passou por ela com muita honradez; Bruto, com muita torpeza. Tudo a que a virtude é acrescentada ganha um decoro que não tinha. Dizemos que um cômodo é iluminado, esse mesmo que é muito escuro à noite: o dia infunde luz a ele, a noite a surrupia.

É assim com essas coisas a que nomeamos “indiferentes” ou “neutras”: riqueza, força, beleza, honrarias, poder e, na outra ponta, morte, exílio, falta de saúde, dores e as outras que tememos um pouco mais, um pouco menos: é a maldade ou a virtude que lhes dá o nome de “bem” ou de “mal”. Uma peça de metal em si não é nem quente nem fria: lançada à fornalha, torna-se brasa; mergulhada em água, resfria. A morte é honrosa pelo que tiver de honroso, ou seja, virtude e espírito que desdenham o que nos é externo.

Lucílio, também há grande diferença entre essas coisas que chamamos “neutras”. De fato, a morte não é um indiferente do mesmo tipo que ter fios de cabelo em número par <ou ímpar>. A morte encontra-se entre aquelas coisas que não são efetivamente más, contudo, dão a impressão de um mal. O amor que a pessoa tem por si mesma é a vontade interior de perdurar e preservar-se, assim como a aversão à extinção *** porque parece privar-nos de muitas coisas boas e afastar-nos de uma profusão de coisas às quais nos acostumamos. O que também nos indispõe com a morte é que já conhecemos estas coisas ao passo que aquelas para as quais faremos a transição desconhecemos – e temos horror do desconhecido.
Além disso, é natural ter medo das trevas às quais, como se crê, a morte há de nos conduzir.

Desse modo, mesmo se a morte é um indiferente, contudo, não é do tipo que possa ser facilmente ignorado: o espírito deve ser fortalecido com extensiva exercitação para que suporte a visão e o assédio dela. Deve-se ter um desdém pela morte maior do que se costuma ter. De fato, passamos a acreditar em muitas coisas em relação a ela. Houve disputa entre muitos com talento para aumentar sua má fama. Descreveu-se um cárcere no mundo inferior e uma região oprimida pela perpétua noite, na qual: o enorme porteiro do Orco, reclinado sobre ossos roídos num antro cruento, ladra eternamente e aterroriza sombras exangues. Mesmo quando estiveres convencido de que são fábulas e que a defuntos
não resta o que temer, emerge outro medo: de fato, eles temem igualmente estar nos ínferos como estar em lugar algum." - Sêneca, Edificar-se para a morte (Das Cartas Morais a Lucílio), Editora Vozes, Pág 121-124


"Diariamente, censuramos o destino: “Por que aquele foi levado no meio do caminho? Por que este não é levado? Por que prolonga a velhice, penosa tanto para si como para os outros?”

Eu te peço, qual dos dois te parece mais justo: Que tu obedeças à natureza ou a natureza a ti? Ora, que interessa que deixes logo o que terás que deixar mais cedo ou mais tarde? Não é preciso se preocupar em viver muito, só o suficiente, pois que se viva muito depende do destino, que se viva o suficiente, do espírito. É longa uma vida se ela for plena. Ora, ela se preenche quando o espírito devolveu para si seu próprio bem e retomou o domínio de si mesmo.

Em que o ajudam oitenta anos transcorridos por inércia? Um homem desses não viveu, mas demorou-se na vida – e não é que morreu tarde, mas levou muito tempo a morrer. “Viveu oitenta anos.” O que interessa é que saibas contar a partir de que dia se deu a sua morte.

“Porém, aquele faleceu jovem.” Mas cumpriu as obrigações de um bom cidadão, de um bom amigo, de um bom filho, em parte alguma falhou. Ainda que a duração de sua existência não tenha sido perfeita, sua vida foi perfeita. “Viveu oitenta anos.” Melhor, existiu por oitenta anos, a não ser que, talvez, digas que ele viveu assim, como se diz que árvores vivem. Lucílio, eu te peço, façamos de modo que nossa vida, como as preciosidades da natureza, não seja muito grande, mas tenha muito peso. É por nossas ações que devemos mensurá-la, não por sua duração. Queres saber qual a diferença entre esse homem vigoroso que tem desdém pela fortuna, que cumpriu todos os deveres da vida humana sendo alçado ao bem supremo, e aquele que passou por tantos anos? Um ainda existe no pós-morte, o outro pereceu antes da própria morte.

Desse modo, devemos homenagear e incluir entre os afortunados este ao qual coube bem o pouco tempo que lhe foi dado. De fato, ele viu a verdadeira luz do dia, não foi um como muitos, viveu e evoluiu. Algumas vezes, desfrutou de um céu sereno, outras vezes, como é normal, o brilho do
astro-rei irrompeu em meio a nuvens. Por que perguntar quanto tempo viveu? Ele vive: alcançou a posteridade e passou para a memória.

Nem por isso eu recusaria que me concedessem mais anos. Contudo, posso dizer que nada me faltou para uma vida feliz se sua duração for reduzida. De fato, não me programei para o dia específico que uma ávida esperança prometera como o último, mas considerei todos como o último. Por que me indagas quando nasci ou se ainda sou recenseado entre os jovens? Já tenho o meu quinhão.

Do mesmo modo que um corpo de feitio menor comporta um homem perfeito, um intervalo de tempo menor comporta uma vida perfeita. A duração da existência é um fator externo. O quanto deve durar a minha vida não depende de mim; o quanto ela vai durar verdadeiramente depende de mim. Exige isso de mim, que eu não atravesse uma existência inútil, como se em meio a trevas. Que eu dirija a minha vida, não me deixe levar por ela." - Sêneca, Edificar-se para a morte (Das Cartas Morais a Lucílio), Editora Vozes, Pág 129-131

Data: 12/12/2020

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